
Escrito por:
Pedro Parker
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Acordou, tentou, no escuro, alcançar os chinelos com os pés. Em vão. Não conseguindo, abaixou-se e pegou-os. Dirigiu-se ao banheiro, xingando. Tomou banho, escovou os dentes sem se olhar no espelho. Não tinha coragem de encarar a própria imagem. Vestiu-se como se estivesse incomodado. Murmurou algo inaudível antes de sair do quarto. Não quis nem abrir a janela, ver o mundo lá fora.
Na cozinha, viu sua esposa preparar o café. O cheiro alcançava suas narinas e dava um gosto bom na boca — como se o cheiro fosse algo que a gente experimenta não só cheirando, mas comendo sabe-se lá como com o nariz.
Ela deu um bom dia e perguntou se ele estava bem. Ele apenas murmurou. Enquanto ela colocava duas xícaras de café na mesa, questionou:
— Quer o pão com manteiga ou requeijão?
— Tanto faz — disse ele, sem levantar os olhos.
Enquanto tomavam café, assistiam a um telejornal local que transmitia as notícias da manhã. Souberam da previsão do tempo: faria frio naquele dia, com possibilidade de pancadas de chuva à tarde.
Entre uma notícia e outra, foram informados que um homem havia sido brutalmente assassinado. O motivo? Ele havia saído de uma balada LGBTQI+ e fora perseguido por um senhor de meia-idade. O assassino, preso, era vizinho da vítima. Na delegacia, algemado, declarou “estar fazendo aquilo em nome de Deus”.
Um silêncio que reinava na cozinha foi quebrado quando o homem ao tomar um gole de seu café disse:
— Complicado. Essa turma é cheia de querer chamar a atenção. Andam esquisito, se vestem pior ainda. Olha no que deu.
A mulher, como se não soubesse o que dizer — ou até soubesse, mas evitando entrar em brigas que não estão em suas possibilidades e vontades — calou-se.
O relógio marcava quase cinco e meia da manhã.
Já no carro, a caminho do metrô, mal se falavam. Ele sempre entrava cedo; ela, não. Caronas eram raríssimas. Mas, naquele dia, ela tinha uma consulta médica e precisava sair cedo. Portanto, precisava ir com ele.
O silêncio no carro era ensurdecedor. A chuva caía lá fora. Gotas grossas batiam no vidro do carro. A esposa pediu para que o rádio fosse ligado. Ele não respondeu. Depois de alguns segundos, como se fosse assaltado por um arrependimento — afinal, teria que pagar aquela atitude colocando-se a conversar — ele ligou o rádio. Mas nada de música, apenas notícias.
Com o rádio ligado, escutavam que, devido à chuva forte da noite anterior, a cidade amanhecera um caos. Estava toda travada. Seria um dia complicado para todos.
Pouco depois, como se apenas agora ele se lembrasse que tinha uma filha, perguntou:
— E a Marina? Não deveria estar acordada para ir à escola?
— Hoje não tem aula, a escola está fechada.
— E quando é que tem? Vive mais fechada do que aberta. Comunistas de merda — apertou o volante com força enquanto balançava a cabeça negativamente.
— Mas os professores não têm culpa — disse a esposa, com voz amarga.
— Não? E quem é que tem? — indagou, aumentando o tom de voz.
— A escola está fechada por falta de água. Já faz dois dias.
O silêncio voltou. A carona seguiu. Marido e mulher não trocavam mais palavras. Nem se quer se arriscavam a olhar um para o outro. Uma viagem de quase quinze minutos, com o silêncio que fazia, parecia durar uma eternidade.
Na entrada do metrô, a mulher se despediu dele. Tentou ainda lhe dar um beijo, mas, tão logo tentou, logo foi repelida. O homem, ao perceber essa atitude da esposa disse:
— Vamos, pare de brincadeira e desça do carro. Aqui é arriscado, posso tomar uma multa.
Ela bateu a porta do carro contrariada. Parecia mais fora de si do que qualquer outra coisa. Seguiu para a estação. A garoa, que antes caia leve, agora se tornava mais grossa. Chovia mais forte.
No trabalho, tudo ocorria normalmente. O homem sem esboçar muitas reações, fazia seu serviço como quem apenas cumpre uma função. Movimentos discretos e automatizados. Sem sorrir ou demonstrar reação. De longe, quem o observasse poderia até mesmo duvidar se aquele que trabalhava ali era uma pessoa ou um robô, quiçá um morto-vivo.
Já no horário de almoço, na copa da empresa, o homem almoçava em silêncio. Colegas ao seu redor discutiam o jogo da seleção brasileira, ocorrido na noite anterior. A seleção jogara mal e empatara em casa. Um dos homens comentou que havia ocorrido casos de racismo durante a partida, por parte dos jogadores e torcedores adversários. Uma investigação seria aberta para apurar o que de fato aconteceu.
Ao terminar de comer sua marmita, o homem se levantou e falou:
— Se apenas se preocupassem em jogar futebol, fariam um bom trabalho. São pagos para isso e só.
À noite, já em casa, o homem, ao entrar, percebeu que sua esposa e filha estavam na sala, reunidas. O jantar já estava pronto e, pelo trelelê das duas, já até jantavam de fato. Ele, sem fazer muito barulho, caminhou em direção ao quarto, limitando-se a dizer “sim”, quando a esposa o chamou para se juntar a elas. Guardou a mala. Despiu-se. Colocou uma roupa mais confortável.
Ao voltar, olhou a mesa por alguns segundos, encarava-a como se algo o incomodasse. Questionou a esposa por ter iniciado o jantar sem a sua presença. Ela, por sua vez, não entendeu de primeiro momento, depois, como se a ficha caísse, respondeu:
— Marina estava com fome. Você se atrasou, então coloquei a mesa. Mas hoje o dia é só dela. — disse sorrindo para a filha, com uma ternura no olhar.
A menina sorriu de volta para a mãe, mas ao olhar para o pai, ajeitou-se na cadeira e, como quem se desculpa por uma falha ou gafe, completou:
— Senta, pai. Eu estava com muita fome e o senhor não chegava, então começamos a comer.
As duas já estavam na sobremesa, o que fez com que o homem se sentisse ofendido, machucado. “Seria este o sentimento de quem descobre a traição de um parceiro(a)?”, pensava ele. Ao sentar-se, começou ele mesmo a se servir. A esposa ainda tentou fazer isso, mas logo foi repelida, como se ele quisesse, com aquele gesto, protestar, mostrar sua indignação.
Enquanto terminava seu pedaço de pudim, a esposa comentou que a filha fora aprovada no vestibular e estaria apta a ingressar em uma universidade pública no ano seguinte. Toda a dedicação dela tinha tido, no fim, uma recompensa. O homem, por sua vez, mastigava sem qualquer tipo de reação. Em sua face, transparecia uma neutralidade de quem janta com estranhos em algum local e ouve histórias aleatórias destes.
Ao terminar de jantar o homem olhou o pudim. Pensou em comer um pedaço, mas, tão logo pensou, desistiu. Lembrou-se de aquela sobremesa era, para ele, a lembrança ou imagem de uma traição. Era uma ofensa. Começou a caminhar em direção ao quarto.
A esposa, esperando mais do que a própria filha por uma palavra acolhedora por parte dele, tentou dizer algo ao vê-lo partir:
— Não vai dar parabéns à tua filha por essa conquista?
E ele, como quem olha um estranho na rua e responde ao seu cumprimento, respondeu:
— Parabéns. Agora irei me deitar que amanhã levanto cedo.
Partiu sem olhar para trás, sumindo em meio à escuridão dos cômodos.
A filha, olhando para o pedaço de pudim que sobrava, perguntou:
— O que a gente faz com esse pedaço?
A mãe, então, respondeu:
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