
Escrito por:
Gustavo Arruda
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Desde 99 trilhando minha história no fundão da zona leste de São Paulo
Minha família plantou as raízes no Jardim da Conquista, extremo leste de São Paulo, nos anos 80. Migrantes do Paraná e Pernambuco, meus avós vivenciaram uma das piores fases da periferia. Nesta década, a violência, o crime e a desigualdade eram marcados pelo crescimento agressivo da cidade. Entre o cinza da floresta de pedra, fábricas de terceiro mundo, biqueiras, a imensidão dos prédios do centro, as longas jornadas de trabalho, os bares de quebrada, as diversas horas no transporte público, a xenofobia dos patrões, minha família aprendia na pele que pra sobreviver aqui. Era necessário atividade. No sangue das minhas veias escorre a dor do sofrimento. Na minha pele derrama o suor da conquista, resultado da luta dos meus.
Minha avó era trabalhadora doméstica, assim como as minhas tias e consequentemente minha mãe, que aos 17 anos descobriria uma gravidez. Sobrevivendo no capitalismo e no inferno, o trabalho sempre foi sinônimo de conquista pra nós. Esta era a única saída para uma suposta mudança. Mas essa filosofia custou a presença da minha coroa. Pra colocar comida na mesa, a sua ausência era inevitável. Passei anos da minha vida sem a presença da minha mãe em aniversários, comemorações, feriados ou em dias comuns. Quem me educava? Ela mesma, a rua.

Eu sempre fui um moleque curioso, atento a maldade, questionador, mas sempre sabendo meu lugar. Jogava campeonatos de futebol na rua ou no campo do CEU São Mateus, passava horas na lan house nos contras de Counter Strike ou Bomba Patch, corria atrás de pipa com meus primos, jogava bolinha de gude, tomava enquadro da polícia e contava aos mais velhos da rua como troféu de conduta, nóis tava crescendo, era o que pensávamos. Avistava a quebrada pela laje e sentia o calor do sol rasgando o céu e me acertando como uma bala perdida. Nasci e cresci na igreja e acreditava fielmente que toda dor e sofrimento dessa terra se encerraria. Casa própria e com piso, água limpa para beber, mesa farta de comida, roupa nova como no natal, seus pais juntos e se respeitando, sua família sorrindo, grama verde para correr e Deus sempre ao lado. Paraíso perfeito para quem sobrevive no cativeiro da babilônia, no apocalipse do capitalismo tardio através do poder opressor das classes dominantes. Sodoma e Gomorra são como Higienópolis e Vila Madalena para quem vive à margem da sociedade no extremo leste.
Minha adolescência foi angustiante, colecionei traumas que me perseguem, fiz feridas nunca cicatrizadas, adquiri maldade e sangue frio, vi o amor aos poucos perder espaço para traição. Por longos anos, em socos, chutes e tapas senti a raiva, em seu olhar sentia o ódio, em sua fala, soube que nunca seria ninguém. Mas o que eu era? Apenas um adolescente. Expulso de casa como Deus e o Diabo. Por diversas vezes sonhei com a morte, ela me perseguia e se apresentava como uma possibilidade. Minha mente e meu espírito se entregaram. Chorei por diversas madrugadas. Minha avó sempre disse que a fila pra conversar com Deus é menos congestionada neste horário, mas no silêncio da minha súplica eu escutava apenas meus demônios. Onde estaria aquele meu Deus da infância? Por que me esqueceu? Por que para viver o paraíso precisamos sobreviver a tanto sofrimento? Durante anos foi apenas eu e mais nada. Mas como diz o bom malandro: se eu não consegui me derrubar, cês não vão.
O ódio e o amor por essa cidade me persegue desde a infância. A favela é como um código. Você aprende a codificar. Tudo é disciplina. Sempre tem um corre pra fazer. Não importa sua idade, é sua obrigação respeitar seu lugar e, principalmente, o espaço do outro. Aos poucos fui conquistando meu espaço. Primeiro trabalho registrado, faculdade pelo Prouni, estágio na televisão, dinheiro entrando, novos estudos, outras oportunidades, nova vida. Minha mãe estava orgulhosa e eu estava vivo. Conheci a comunicação e suas infinidades de possibilidades. Pra quem não enxergava outra possibilidade senão a morte, agora eu podia escrever histórias, imaginar cenários, registrar memórias, me conectar com outras culturas através do audiovisual, operar uma câmera, aprender sobre arte, sobre a vida e como ela sempre foi importante pra mim. O audiovisual me salvou.

Eu sinto que tudo está escrito e eu nasci pra viver isso. É como um filme: Deus escreveu o roteiro. Hoje eu encontrei o amor e quando bateu eu nunca mais senti medo da morte. O mundo não me assusta mais e muito menos as pessoas ou esse sistema, é por isso que eu tô cheio de ódio, mas eu sempre colho e planto amor. Da babilônia eu só preciso sair rico e vivo, ver a minha família sorrindo, registrar minhas memórias e viver a vida bem além de um domingo. Fé pra isso.
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