A obra ‘O cortiço’ e uma volta ao passado

23/04/2025

Escrito por:

Pedro Parker

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Recentemente terminei de ler o livro ‘O Cortiço’, de Aluísio Azevedo, um dos romancistas mais conhecidos do país.

Aluísio, natural do Maranhão, retrata um romance ambientado no Rio de Janeiro, mais precisamente em Botafogo, entre 1900–1930. O leitor, ao acessar a obra, poderá entender o contexto social do país à época.

Sobre o livro

Fazendo uma breve introdução a obra, os leitores são apresentados a dois personagens principais: João Romão, um português, que após a morte de seu patrão herda o comércio em que trabalhava e parte de uma herança, e Miranda, que mantém um casamento apenas por aparência, e ou status.

João Romão, com a herança que ganha, constrói em um espaço vazio um cortiço, onde posteriormente começa a ganhar dinheiro com quartinhos de aluguel. Miranda, ao tentar acabar, ou ao menos diminuir as infidelidades da esposa, Estela, muda-se com a família para uma casa ao lado do cortiço construído pelo português. Os dois, ao se tornarem vizinhos, começam uma rivalidade que passará por muitas reviravoltas.

O cortiço vai se desenvolvendo, moradores vão chegando. A história vai se desenrolando como um todo. Somos apresentados a diversos cenários e formas de relações sociais, todas acontecendo dentro do próprio cortiço.

É preciso citar que a obra, em alguns momentos, carrega situações que ainda são bem atuais.

O romance é fácil e gostoso de ler. É uma ótima recomendação. Tampouco é um daqueles livros com muitas páginas — O Cortiço já foi contada de várias formas, portanto, caso o livro não agrade, é possível consumir a obra de outras formas — filmes, quadrinhos, curtas.

E foi após ler o livro, a partir dele, que eu resolvi visitar minhas memórias, pois eu também já fui morador de um cortiço. Abaixo uma breve volta ao passado — minha história cruzando com ficção de Aluísio.

Conexão com a infância, volta ao passado

Ao reler a obra, visto que eu já havia lido o livro muitos anos atrás, eu pude relembrar de algumas passagens da minha vida. Foi como revisitar o passado, mesmo que brevemente.

Assim como muitos personagens da obra, eu, junto da minha família, também fui morador de um cortiço na infância. Dos três aos nove anos de idade, talvez dez, eu dividi um quartinho com meu irmão mais velho e minha mãe.

Lá, pude também ter acesso a inúmeros cantos do país sem sair do lugar, a diversas culturas e claro, inúmeras relações sociais. Tudo acontecia ao mesmo tempo onde eu morava. Era tudo muito misturado.

Me peguei pensando naquele tempo, naquela época, em que ainda criança, fui exposto a diversas situações.

Um só lugar, diversas culturas

Em O Cortiço somos introduzidos a vários personagens. Há culturas convivendo em um único espaço. Personagens como: Rita baiana — como seu próprio nome denuncia, Miranda e Estela, cariocas, Jerônimo e Piedade, portugueses, entre tantos outros, se relacionam, criando inúmeros acontecimentos. Um choque cultural, literalmente.

E assim como na obra, no cortiço onde morei, eu pude ver e conviver com pessoas de variados locais do Brasil. Eram mineiros, paraibanos, baianos, capixabas, paranaenses, paraenses e tantos outros.

Minha própria família trazia essa diversidade — minha mãe, por exemplo, é natural do Pernambuco. Ainda criança, eu não me dava conta. Hoje, percebo que estive em muitos pedaços do Brasil — sem jamais sair de casa.

Festas, relações sociais e lembranças de casa

Em alguns capítulos da obra de Aluísio, é possível ver como as festas são feitas e organizadas. Há muita alegria envolvida — além de fartura em bebidas e comidas. Músicas são cantadas, e cada um traz, seja na letra de uma canção ou na comida preparada, um pedacinho de sua terra natal.

Tal qual a obra, eu também vi — e até mesmo participei — de muitas festas no cortiço onde morava. Havia ou não motivo para celebrar? Pouco importava. Músicas, cantos, comidas e bebidas — tudo, de certa forma, era um canto do Brasil mandando seu “alô” ali, naquele espaço.

Nesses dias de festa, era possível ver no rosto dos moradores um misto de emoções: saudades de sua terra e dos seus, alegria por relembrar o lugar onde nasceram — e por matar, mesmo que por um breve momento, um pouco da saudade de casa.

Ás vezes, aquilo que nos faz rir é exatamente a mesma coisa que nos faz chorar.

O pulsar da vida

Em O Cortiço é possível ver a vida pulsar. Pessoas acordam, tomam café, conversam, saem para trabalhar. Se reúnem, uns nas casas dos outros, compartilham uma xícara de chá — café, trocam palavras.

Onde morei, a mesma lembrança, sensação desse pulsar. Corpos transitavam por aquele espaço.

O despertar das crianças a caminho da escola, o barulho das chaves trancando o quartinho, a tosse de quem está saindo para trabalhar. O cheiro do café — como um inspetor matinal, passando em cada canto — tudo ali era vida.

Preconceito

O personagem Miranda, assim como outros, vê o cortiço de João Romão como um lugar sujo, indigno, inferior. Há uma visão carregada de preconceito — classista, elitista — que reduz os moradores daquele espaço a uma condição de inferioridade. Entende-se, na perspectiva deles, que quem ali vive é pobre e, portanto, sem valor.

Ao lado do cortiço onde morei, haviam algumas casas. Os moradores dessas casas, nossos vizinhos, costumavam proferir palavras pouco amistosas contra nós. Era evidente, nas falas e olhares, que éramos tratados como pessoas, cidadãos de segunda classe — uma ralé invisível.

Solidariedade

Em algumas cenas do livro é possível ver a solidariedade entre os moradores do cortiço. Em uma delas, um incêndio atinge um dos quartinhos. O fogo se espalha e começa a alcançar os outros quartos. Nesse momento, muitas pessoas, comovidas com a situação, se unem e agem rapidamente para salvar vidas — e também objetos, fossem seus ou dos vizinhos.

No cortiço onde morei, a solidariedade era comum, cultivado em nosso cotidiano. Quanta vezes vi minha mãe pedir ou emprestar algo — como um pacote de arroz, por exemplo. Se alguém precisasse de ajuda, fosse o que fosse, sempre havia uma mão estendida.

Para uma parte da população, frequentemente esquecida pelo poder público, ser solidário é quase um instinto — uma prática que nasce da necessidade e convivência. O lema, para nós, sempre foi: nós, por nós mesmos.

Para aqueles que ainda não leram essa obra, um recado: leiam. Vale a muito a pena. Acredito que muitos, assim como eu, irão se identificar. E para aqueles que não partilham da mesma realidade social, não se preocupem, O Cortiço é um convite para descobrir novas e velhas histórias.

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